Audiência pública denuncia dificuldades no atendimento a HIV/Aids e tuberculose durante a pandemia



Uma audiência pública da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, coordenada pela deputada Luciana Genro (PSOL), debateu nesta quarta-feira (24/03) o atendimento a pessoas que vivem com HIV/Aids e tuberculose durante a pandemia do coronavírus no estado. Na ocasião, representantes de organizações da sociedade civil e de movimentos sociais denunciaram as dificuldades pelas quais essa população vem passando.

A data da realização da audiência, 24 de março, é o Dia Mundial de Combate à Tuberculose, doença que é a principal causa de morte de pessoas que vivem com HIV/Aids, fato que foi destacado por Luciana – que coordena a Frente Parlamentar de Enfrentamento ao HIV/Aids, Hepatites Virais, Sífilis e Outras ISTs – em sua fala de abertura. A deputada ainda chamou atenção para o fato de que seis dos vinte municípios brasileiros com maior taxa detecção de HIV são do Rio Grande do Sul, sendo o primeiro deles Rio Grande, enquanto Porto Alegre está em terceiro lugar.

A conselheira do Fórum de ONGs Aids do RS, Carla Almeida, trouxe dados inéditos de um estudo realizado em todo o Brasil que buscou entender a relação da covid-19 com a tuberculose e o HIV/Aids. Os resultados foram preocupantes, especialmente para o Rio Grande do Sul, onde, por exemplo, 60% dos profissionais de saúde apontaram que houve redução nas equipes técnicas dos serviços de tuberculose e 80% dos usuários dizem que não recebem nenhum incentivo para aderir ao tratamento de tuberculose.

“O cenário mostra a forma contundente como os serviços de tuberculose foram atropelados pela pandemia. Os pacientes dessas duas doenças são pessoas de extrema vulnerabilidade social. A gente já não vinha conseguindo responder e esses dados nos apontam um recrudescimento muito grande da tuberculose em Porto Alegre. Em relação às políticas de HIV/Aids, o impacto da pandemia também foi imenso”, colocou Carla.

No mesmo sentido, Neuza Heinzelmann, do Comitê Estadual de Enfrentamento da Tuberculose – CEETB/RS, reiterou que dentre as populações afetadas por tuberculose e por HIV/Aids também estão aquelas marginalizadas, como pessoas em situação de rua, em privação de liberdade, trabalhadoras do sexo, entre outros. “Verificamos taxas de abandono [ao tratamento] bastante altas. Precisamos garantir que essa população não desista de seus tratamentos, mas não é o que a gente vê acontecendo”, lamenta. Apesar das adversidades, ela afirmou que o Comitê conseguiu aprovar, em discussões no Conselho Estadual de Saúde, uma política de promoção de equidade em saúde voltada para os segmentos mais vulneráveis.

O fato de as enfermidades serem negligenciadas por estarem associadas a populações marginalizadas também foi apontado por Nêmora Barcelos, médica e professora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Unisinos. “Tuberculose e HIV são muito vinculadas à pobreza. Tem a ver com uma questão de ignorância do poder, as classes privilegiadas não conseguem nem visualizar essas doenças. Estamos vendo diagnósticos tardios de tuberculose e HIV, o que aumenta a transmissibilidade”, denunciou a professora. Ela chamou atenção para o somatório de riscos apresentado pela combinação de HIV e covid, assim como um aumento da “violência, do estigma, da discriminação, do isolamento e ódio contra pessoas vivendo com HIV/Aids” neste momento de pandemia.

A preocupação com o desmonte das equipes de saúde também foi trazida por Marcos Rovinsky, vice-presidente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul. “Muitas vezes estamos trabalhando em péssimas condições de trabalho, sem estabilidade. Hoje os profissionais são contratados como pessoa jurídica e às vezes até por WhatsApp”, afirmou. Já a representante da Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS), Maria Letícia Ikeda, assegurou que “com todo o esforço e trabalho que vem sendo despendido para a resposta à covid-19, não se deixou em momento algum de trabalhar no combate à HIV e tuberculose”.


Representantes de movimentos sociais falam de dificuldades e estigmas


Por parte do Grupo de Apoio à Prevenção da Aids (GAPA-RS) e do Conselho Estadual de Saúde, Carlos Duarte denunciou a desassistência causada pela pandemia no Brasil. “Os serviços já estavam precarizados antes da pandemia, aqui no RS essa precarização vem de anos. Sabemos de pessoas com HIV que estão contraindo covid e muitas vezes estão ativando uma tuberculose. E estão tendo o diagnóstico de covid, mas não necessariamente de tuberculose”, relatou. Já Caio Klein, da ONG Somos, reforçou que a epidemia vem contribuindo “para reiterar a exclusão de pessoas já vulneráveis”. Representando o Conselho Estadual de Promoção dos Direitos LGBTs, Cleonice Araújo lamentou que todos os dias abre suas redes sociais e se depara com a morte de ativistas e militantes vítimas de covid que estão falecendo por lutar nas suas bases, nos seus movimentos.

Gabriel Galli, que representou o mandato da deputada federal Fernanda Melchionna, destacou a importância de se “reconhecer o quanto a política de desmonte do atendimento à tuberculose, HIV e outras ISTs é causada principalmente por uma política de desmonte dos serviços de saúde que é capitaneada pelo governo federal”. Gina Hermann, do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas, afirmou que tem havido uma diminuição nos atendimentos de portadores de HIV/Aids e que as pessoas diagnosticadas atualmente têm maior dificuldade de acolhimento. “Hoje está muito mais complicado se descobrir positivo”, lamentou.

A vulnerabilidade à qual estão expostas as prostitutas foi abordada por Fernanda Falcão, da Rede das Travestis, Transexuais e Homens Trans vivendo com HIV/Aids. “A prostituição não é uma profissão regularizada, então as pessoas precisam comer e precisam ir para a rua. Os serviços que já não acolhiam, agora não acolhem mesmo. As pessoas estão parando seus tratamentos”, denunciou. Representante do Conselho Municipal LGBT de Pelotas, Rodrigo Rosa destacou a preocupante situação da região sul do estado com relação aos dados de HIV/Aids e denunciou que tem havido a interrupção de consultas eletivas para pacientes em situação regular de tratamento.

A Presidente do Conselho Municipal dos Direitos Humanos de Porto Alegre, Márcia Leão, que também é conselheira do Fórum de ONGs Aids RS, destacou a importância de se discutir essa pauta na Assembleia. “É importantíssimo esse reconhecimento num momento em que o Brasil passa por um processo tão difícil como esse do enfrentamento à covid”, colocou. Rubens Raffo, também do Fórum, denunciou a falta de recursos aos movimentos e organizações não governamentais, enquanto Flávio Cunha, da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e Aids, lembrou que o combate à Aids vem “perdendo muita coisa” desde que foi encerrado o departamento que lidava especificamente com a doença.


Contraponto e encaminhamentos


Como encaminhamento, Carla Almeida sugeriu, então, que fosse redigido um documento para a Secretaria Estadual da Saúde para que esta apresente o plano que vem sendo colocado em prática pensando na convergência dessas agendas de combate à covid-19, ao HIV/Aids e à tuberculose. “O impacto da pandemia no cenário de HIV/Aids é devastador, tanto em relação à manutenção de consultas quanto no acesso às estratégias de prevenção. Temos que entender melhor de que forma o estado do RS está respondendo a esse cenário”, colocou. Gabriel Galli também sugeriu cobrar como estão sendo aplicadas as políticas de educação para prevenção, conhecimento e combate ao estigma em relação ao HIV/AIDS e à tuberculose, e também demandou a volta dos editais de apoio aos movimentos sociais que fazem esse trabalho educativo.

Como contraponto, a representante da SES colocou que qualquer esclarecimento será fornecido pelo poder Executivo, mas garantiu que as políticas públicas não foram interrompidas, apontando que apenas tem havido um contingenciamento de determinadas ações devido à necessidade de distanciamento social. “Não há estagnação das políticas públicas de HIV e tuberculose, mas há uma adequação porque estamos impossibilitados”, afirmou.

A construção deste ofício, então, foi acatada como encaminhamento da audiência. “Queremos construir um documento em que inclusive a gente possa conseguir o apoio de parlamentares da base do governo, para exigir do governo as políticas necessárias para o caso de pessoas que vivem com HIV/Aids e tuberculose”, colocou Luciana Genro. O ofício será assinado pela deputada, como coordenadora da Frente Parlamentar, pelos demais deputados que desejarem aderir e pelos movimentos sociais e organizações da sociedade civil presentes na audiência pública.


Foto: a deputada estadual Luciana Genro; Nêmora Barcelos; 
Carla Almeida e Carlos Duarte.

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